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Comunicação e Imprensa

Membrana amniótica humana como curativo biológico temporário no tratamento de lesões

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Eduardo Mainieri Chem

André Oliveira Paggiaro

Luana Pretto

Aline Francielle Damo Souza

 

O grande desafio quando se fala em grandes perdas cutâneas por traumas ou queimaduras é a disponibilidade de substitutos cutâneos adequados para a cobertura da região lesada. Em geral, o enxerto autógeno de pele soluciona a maior parte dos casos; entretanto, algumas vezes, as lesões podem ser muito extensas e as áreas doadoras são insuficientes para a cobertura da área danificada. Outras vezes, o leito destas feridas pode apresentar má qualidade, prejudicando a integração da pele transplantada e acarretando a perda do enxerto. Uma alternativa nestes casos é o uso de um curativo biológico substituto, de origem biológica ou sintética, que permitem a oclusão temporária ou definitiva das feridas 1.

Dentre os substitutos cutâneos, destaca-se o transplante de pele alógena (proveniente de um indivíduo da mesma espécie, geneticamente distinto) que propicia a melhora do leito da ferida, estimula o processo de cicatrização e, algumas vezes, pode funcionar como uma matriz de regeneração dérmica 2. No Brasil, atualmente, temos três Bancos de Tecidos em atividade (Porto Alegre, São Paulo e Curitiba) que disponibilizam pele alógena processada aos médicos transplantadores para o uso clínico. No entanto, é unânime entre os Bancos uma grande dificuldade: a falta de doadores suficientes para atender a demanda nacional.

Uma alternativa à pele alógena como substituto cutâneo poderia ser o uso das membranas amnióticas. A membrana amniótica é um tecido avascular que compõe a parte mais interna da membrana fetal (figura 1). Histologicamente, ela é muito semelhante ao tecido cutâneo, tendo a mesma origem embrionária, o ectoderma 3. Quando transplantada, a membrana amniótica funciona como uma barreira contra a invasão bacteriana, reduz a perda de fluidos corpóreos e proteínas, aporta fatores de crescimento e moduladores da cicatrização, reduz a dor local por cobrir as terminações nervosas; enfim, restabelece as condições ideais para que o processo de cicatrização progrida satisfatoriamente.

Diversos fatores levam a crer que a membrana amniótica pode se tornar a solução para os problemas de escassez de pele no país.  Ela é facilmente captada ao final do parto e a doação não costuma ter nenhum tipo de rejeição pelas mães, já que este material costuma ser desprezado. Também cabe salientar que, diferentemente da pele, que costuma ser solicitada às famílias em um momento de luto, o pedido pela membrana amniótica ocorre em uma etapa de grande felicidade familiar facilitando, o aceite da doação.

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Figura 1. Separação digitiforme da membrana aminiótica humana.

 

Outra vantagem importante deste tecido é a sua grande disponibilidade.  De janeiro a dezembro de 2015, o Serviço da Maternidade da Santa Casa de Porto Alegre realizou 1.604 cesarianas, uma média de 134 partos por mês. Estimando-se que o Banco de Tecidos realizasse a captação de membrana amniótica de 80% dos partos, ao final de 2015 os estoques deste tecido seriam de aproximadamente 1.026.560 cm². Dessa forma, a captação da membrana amniótica aumentaria a disponibilidade de tecidos para transplante em mais de 120 vezes quando comparado à pele glicerolada. Com esta quantidade de tecido em estoque, seria possível atender, além de grande e gravíssimos queimados, pacientes com traumas menores e não tão profundos, utilizando-a como um curativo em zonas doadoras de enxerto de pele autógeno ou até mesmo como curativo biológico temporário em queimaduras de segundo grau em crianças.

Vale também ressaltar as vantagens financeiras da membrana amniótica. O seu processamento pode ser realizado pela técnica de conservação em alta concentração de glicerol com custos muito menores quando comparados à pele glicerolada ou, principalmente, aos biomateriais importados extremamente caros (gráfico 1). 

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Gráfico 1. Membrana amniótica humana x substitutos dérmicos: comparativo de custo por cm².

 

Clinicamente, a membrana amniótica produz uma melhora do leito da ferida, libera fatores de crescimento e moduladores de cicatrização, que estimulam a proliferação e a migração de queratinócitos acelerando a reepitelização de feridas (figuras 2 e 3). O efeito bactericida observado foi atribuído à capacidade de aderência da membrana amniótica na superfície da ferida ou também a uma possível restauração da microcirculação local, permitindo uma renovação acentuada de fagócitos e de fatores bacteriostáticos séricos.  Além disso, foi demonstrada a boa capacidade da membrana amniótica na supressão da hipergranulação existente em feridas que se cronificam. Todas estas propriedades favorecem o tratamento de queimados e podem auxiliar também no tratamento de feridas crônicas em diabéticos ou em úlceras de estase venosa 4,5,6,7.

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Figura 2. Caso clínico de tratamento de queimadura com autoenxerto de pele combinado com a cobertura pela membrana amniótica. P.O.: Pós operatório.

 

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Figura 3. Evolução clínica de tratamento de queimadura de face com a aplicação de membrana amniótica.

 

O primeiro relato clínico do uso de membrana fetal como substituto dérmico no transplante de pele foi realizado por Davis em 1910 8. Em 1913, Stern e Sabella descreveram o uso de membrana amniótica em superfícies corporais queimadas e com ulcerações. Observou-se nos pacientes transplantados uma redução da dor associada à ausência de infecções bacterianas 9,10. O resultado positivo obtido com o uso de membrana amniótica levou ao seu uso continuado como curativo biológico até os dias de hoje.

Também no campo da oftalmologia, a membrana amniótica apresenta grande utilidade, sendo descrita pela primeira vez em 1940 na reparação de simbléfaro e de defeitos conjuntivais 11. Atualmente, vem sendo utilizada na reconstrução da superfície ocular em substituição ao tecido conjuntival e para estímulo da reparação epitelial em casos de lesão corneana. Seu emprego tem se estendido também a outras situações como o tratamento de onfalocele e na prevenção de adesão tecidual em cirurgias da cabeça, abdômen, pélvis, vagina e laringe 12.

A membrana amniótica também pode ser considerada um biomaterial com grande potencial de reparação tecidual, servindo como uma matriz de regeneração ou um substrato para o transplante de células autógenas e alógenas cultivadas. Utilizando conceitos de bioengenharia de tecidos, já foram descritos substitutos cutâneos formados por membrana amniótica servindo como derme para o cultivo de queratinócitos humanos 13.

O desenvolvimento de técnicas para o processamento de membranas amnióticas em território nacional poderia consolidar mais uma opção de tratamento ao paciente queimado, diminuindo a necessidade de utilização de substitutos dérmicos - produtos importados e de alto preço. A membrana amniótica pode ser preservada através da utilização de glicerol em altas concentrações da mesma forma que a pele alógena é conservada no Brasil e em outros países atualmente. Esse é um procedimento pouco oneroso e que permite a conservação do tecido por até dois anos em geladeira.

Infelizmente, apesar do grande conhecimento a respeito das vantagens do uso clínico da membrana amniótica, no Brasil não temos nenhuma regulamentação e política de financiamento para a distribuição deste material pelos Bancos de Tecidos brasileiros. Países vizinhos como Ururguai e Argentina já utilizam este tecido como rotina, sendo que no grande incêndio ocorrido na boate Kiss em janeiro de 2013 o país importou membranas amnióticas para auxiliar no tratamento de queimados.  Este grande atraso precisa ser corrigido, sendo premente a criação de uma portaria brasileira que reconheça e autorize a captação, o processamento e a disponibilização da membrana amniótica para transplante.

Os Bancos de Tecidos brasileiros vêm batalhando desde 2009, de forma ativa, para a aprovação da portaria federal que inclua a membrana amniótica humana no rol dos tecidos a serem captados, preservados e disponibilizados. Porém, até o presente momento, ainda não obtivemos êxito em nossa luta, por isso cada vez mais buscamos o apoio tanto das sociedades médicas como civil para que juntos possamos pressionar nossas autoridades a corrigir esse grande atraso.

 

Referências

 

  1. Kagan RJ, Robb EC, Plessinger RT. Human skin banking. Clin Lab Med. 2005; 25 (3):587-605;
  2. Ferreira MC, Paggiaro AO, Isaac C; Skin substitutes: current concepts and a new classification system. Rev Bras Cir Plast 2011;26(4): 696-701.
  3. Liu J, Sheha H, Fu Y, Liang L, Scheffer C and Tseng. Update on amniotic membrane transplantation. Expert Rev Ophthalmol 2010 October; 5(5): 645–661;
  4. Shimazaki J, Shinozaki N, Tsubota K. Transplantation of membrane and limbal autograft for patient with recurrent pterygium associated with symblepharon. Br J Ophthalmol 1998; 82:235-40;
  5. Talmi, YP. Sigler, L, Inge, E. et al. Antibacterial properties of human amniotic membranes. Placenta 1991; v. 12, n. 3, p. 285-8;
  6. Rejzek A, Weyer F, Eichberger R, Gebhart W. Physical changes of amniotic membranes through glycerolization for the use as an epidermal substitute. Light and electron microscopic studies. Cell Tissue Bank. 2001;2(2):95-102;
  7. Bigbie, RB, Shumacher, J, Moll, D, et al. Equine amnion as a biological dressing in the treatment of open wounds in horses. Proceedings of the Annual Convention American Association of Equine Pract. 1990, v. 35, p. 117-25.
  8. Davis JW. Skin transplantation with a review of 550 cases at the Johns Hopkins Hospital. Johns Hopkins Med J 1910;15:307;
  9. Stern M. The grafting of preserved amniotic membrane to burned and ulcerated surfaces, substituting skin grafts. JAMA 1913; 60:973;
  10. Sabella N. Use of the fetal membranes in skin grafting. Med Rec 1913; 83:478-480;
  11. De Roth A. Plastic repair of conjunctival defects with fetal membrane. Arch Ophthalmol 1940;23:522-5;
  12. Kim JC, Tseng SCG. Transplantation of preserved human amniotic membrane for surface reconstruction in severely damaged rabbit corneas. Cornea 1995;14:473-84;
  13. Paggiaro AO. Efeitos da radiação ionizante em membranas amnióticas gliceroladas empregadas como substrato ao cultivo de epitélio humano, 2011. Tese (Doutorado)-Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.